Excerto do romance inédito "Brasil, Velório dos Sonhos"
A MORTE DA CHIQUINHA
Rio de Janeiro (1988)
Circulámos pela
Avenida Rio Branco e entrámos na Avenida Beira Mar. Quando chegámos às
imediações do Bairro da Glória o sargento começou a abrandar o veículo. Àquela
hora, cerca da uma da manhã, naquele local o
movimento do trânsito era mais concentrado. Alguns travestis, como pelicanos, levantavam as
saias mostrando as suas pernas enormes, calçadas por saltos altíssimos, enquanto
outros expunham a silicone perfeita dos seios e das nádegas, tentando corromper
de desejo a avenida.
Do nosso carro
acercou-se uma morena que debitou o preço dos seus serviços. O sargento
pediu-lhe delicadamente para entrar. Com um sorriso de larga satisfação ela sentou-se
no banco de trás. Pelo canto do olho vi-a abrir a pequena mala e
passar o batom pelos lábios, num derradeiro e vaidoso retoque de feminilidade.
É claro que fiquei
surpreendido, pois não esperava que um sargento da polícia, um suposto macho
nas suas atitudes, e um machão nas suas convicções, pudesse alugar os serviços
de um travesti para satisfazer os seus desejos excêntricos de sexo. Mas eu era
um convidado e como tal não tinha direito a opiniões, razão pela qual fiquei
tolhido pela incerteza do que iria suceder, pois esperava não me ver envolvido
com aquela prostituta, não só por não ter o menor resquício de desejo por tal
personagem, como por estar de sexo morto para qualquer exibição sexual, dadas
as decepções sofridas na minha vida e que praticamente me haviam tornado um
abstémio convicto.
O sargento Anderson
guiou-nos até ao Aterro do Flamengo. Descemos do carro e, em silêncio, atravessámos
os jardins com a cadência das vagas do mar inundando-nos os sentidos, numa
agradável harmonia da espuma dedilhando a areia.
O sargento
perguntou o nome à nossa acompanhante. Ela disse chamar-se Francisca, mas que
não tinha nada a opor se a tratássemos de Chiquinha. Aliás, até gostava mais que
assim fosse. Perguntou-lhe também a razão pela qual se tornara travesti, ao que
ela respondeu que desde miúdo sempre sentira atracção por homens. Que nunca
tivera relações sexuais senão com machos, e que sempre desejara ter um corpo de
mulher onde acolhesse a mentalidade feminina que possuía. Por último, ele perguntou-lhe
se era coragem ou estupidez o facto dela aceitar a boleia de um cliente sem o
conhecer, expondo-se a possíveis perigos? Aqui os olhos dela revelaram um trejeito
de medo e foi com um frémito na voz que respondeu que a sua profissão era um
risco, mas que tinha que confiar nos clientes para obter a sua cumplicidade
e os seus serviços.
Anderson pediu-lhe
para ela se despir. Lentamente, trauteando uma música suave, a Chiquinha foi
tirando as peças do seu vestuário num striptease encenado para acicatar a
excitação. Só quando tirou a última peça, as cuecas, e o seu sexo enroscado entre
pernas se soltou e se compôs sobre os testículos, se confirmou que era um
homem. Era espantoso poder ver um corpo daqueles. Não se podia ficar
indiferente. As mulheres, que nascem mulheres, fazem da sua vida uma luta
constante e interminável para serem mais belas, terem formas mais perfeitas,
cabelos e rostos mais cativantes e atraentes, gastando milhões em cremes,
operações plásticas, ginásios, clínicas de beleza, e muitas são aquelas que nunca se
encontram como pessoas, devido à frustração de não gostarem de si mesmas, dos
seus corpos e da sua aparência pouco feminina. E agora ali estava aquele homem,
num corpo tão perfeito de mulher, que violava a lei da natureza e chegava a
causar-me dor pelas inúmeras mulheres que lutam e sofrem tanto para terem uma
aparência naturalmente feminina e jamais o conseguem. Estava pasmado, pois já
tinha tido entre as minhas mãos vários corpos de mulheres e era obrigado a
constatar que nenhuma delas possuía atributos tão atraentes. Naquele momento
senti verdadeiramente pena daquele grupo enorme de mulheres que morrem sem o
direito a sê-lo de verdade.
Não sei o que
pensou o sargento Anderson, mas acredito que também não deve ter ficado
indiferente. O que sei é que ele sacou a arma que trazia à cintura, entalada
entre o cinto e as calças ,e apontando-a à Chiquinha disse-lhe;
- Não passas de uma aberração! De uma vergonha
para a humanidade! Se não queres ser como Deus te fez, deixaste de ser seu
filho e de ter direito a viver no seu mundo!
Chiquinha começou a
entrar em pânico tentando tapar-se com as mãos, numa vergonha apenas motivada pelo cagaço. Começou a chorar e por certo tentaria
fugir, não fosse estar paralisada de medo. O sargento aproximou-se dela,
fez-lhe o sinal da cruz com a arma, como numa extrema-unção, e rebentou-lhe o
seio esquerdo com um tiro abafado pelo silenciador. O corpo dela foi cuspido
pelo impacto e caiu desamparado de costas. O último movimento no seu corpo, foi
o do pénis tombando morto sobre os testículos.