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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

NÃO ENGANES O AMOR

NÃO ENGANES O AMOR

De que serve o teu corpo
nu e branco de lã
pintado sobre os lençóis,
como uma ovelha
acordando entre a manta 
de ervas húmidas
e verdejantes da manhã,
espreguiçando-se num quadro belo e artístico
mas de uma natureza morta sem sentimentos?

Não enganes o Amor
com a suculência madura dos teus seios,
o cheiro da tua pele
inebriada pela fragrância do desejo,
a lareira quente do teu sexo
onde arde a sedução.

Abre-te com carinho,
com os gestos simples
de quem despe o coração
e deita a alma das palavras
sobre o peito daquele que te ama.

Ele quer ficar contigo,
com a tua verdade humana,
e não com a boneca mecânica
programada para fabricar a ilusão.

Não ouses enganá-lo
com a cegueira do prazer,
porque o Amor é generoso
e é tão humilde e crente,
que a tua reles mentira
pode matá-lo de paixão.

                                            Chamusca, 30/10/2013


sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A MORTE DA CHIQUINHA

Excerto do romance inédito "Brasil, Velório dos Sonhos"

A MORTE DA CHIQUINHA

Rio de Janeiro (1988)

Circulámos pela Avenida Rio Branco e entrámos na Avenida Beira Mar. Quando chegámos às imediações do Bairro da Glória o sargento começou a abrandar o veículo. Àquela hora, cerca da uma da manhã, naquele local o movimento do trânsito era mais concentrado. Alguns travestis, como pelicanos, levantavam as saias mostrando as suas pernas enormes, calçadas por saltos altíssimos, enquanto outros expunham a silicone perfeita dos seios e das nádegas, tentando corromper de desejo a avenida.
Do nosso carro acercou-se uma morena que debitou o preço dos seus serviços. O sargento pediu-lhe delicadamente para entrar. Com um sorriso de larga satisfação ela sentou-se no banco de trás. Pelo canto do olho vi-a abrir a pequena mala e passar o batom pelos lábios, num derradeiro e vaidoso retoque de feminilidade.
É claro que fiquei surpreendido, pois não esperava que um sargento da polícia, um suposto macho nas suas atitudes, e um machão nas suas convicções, pudesse alugar os serviços de um travesti para satisfazer os seus desejos excêntricos de sexo. Mas eu era um convidado e como tal não tinha direito a opiniões, razão pela qual fiquei tolhido pela incerteza do que iria suceder, pois esperava não me ver envolvido com aquela prostituta, não só por não ter o menor resquício de desejo por tal personagem, como por estar de sexo morto para qualquer exibição sexual, dadas as decepções sofridas na minha vida e que praticamente me haviam tornado um abstémio convicto.
O sargento Anderson guiou-nos até ao Aterro do Flamengo. Descemos do carro e, em silêncio, atravessámos os jardins com a cadência das vagas do mar inundando-nos os sentidos, numa agradável harmonia da espuma dedilhando a areia.
O sargento perguntou o nome à nossa acompanhante. Ela disse chamar-se Francisca, mas que não tinha nada a opor se a tratássemos de Chiquinha. Aliás, até gostava mais que assim fosse. Perguntou-lhe também a razão pela qual se tornara travesti, ao que ela respondeu que desde miúdo sempre sentira atracção por homens. Que nunca tivera relações sexuais senão com machos, e que sempre desejara ter um corpo de mulher onde acolhesse a mentalidade feminina que possuía. Por último, ele perguntou-lhe se era coragem ou estupidez o facto dela aceitar a boleia de um cliente sem o conhecer, expondo-se a possíveis perigos? Aqui os olhos dela revelaram um trejeito de medo e foi com um frémito na voz que respondeu que a sua profissão era um risco, mas que tinha que confiar nos clientes para obter a sua cumplicidade e os seus serviços.
Anderson pediu-lhe para ela se despir. Lentamente, trauteando uma música suave, a Chiquinha foi tirando as peças do seu vestuário num striptease encenado para acicatar a excitação. Só quando tirou a última peça, as cuecas, e o seu sexo enroscado entre pernas se soltou e se compôs sobre os testículos, se confirmou que era um homem. Era espantoso poder ver um corpo daqueles. Não se podia ficar indiferente. As mulheres, que nascem mulheres, fazem da sua vida uma luta constante e interminável para serem mais belas, terem formas mais perfeitas, cabelos e rostos mais cativantes e atraentes, gastando milhões em cremes, operações plásticas, ginásios, clínicas de beleza, e muitas são aquelas que nunca se encontram como pessoas, devido à frustração de não gostarem de si mesmas, dos seus corpos e da sua aparência pouco feminina. E agora ali estava aquele homem, num corpo tão perfeito de mulher, que violava a lei da natureza e chegava a causar-me dor pelas inúmeras mulheres que lutam e sofrem tanto para terem uma aparência naturalmente feminina e jamais o conseguem. Estava pasmado, pois já tinha tido entre as minhas mãos vários corpos de mulheres e era obrigado a constatar que nenhuma delas possuía atributos tão atraentes. Naquele momento senti verdadeiramente pena daquele grupo enorme de mulheres que morrem sem o direito a sê-lo de verdade.
Não sei o que pensou o sargento Anderson, mas acredito que também não deve ter ficado indiferente. O que sei é que ele sacou a arma que trazia à cintura, entalada entre o cinto e as calças ,e apontando-a à Chiquinha disse-lhe;
 - Não passas de uma aberração! De uma vergonha para a humanidade! Se não queres ser como Deus te fez, deixaste de ser seu filho e de ter direito a viver no seu mundo!

Chiquinha começou a entrar em pânico tentando tapar-se com as mãos, numa vergonha apenas motivada pelo cagaço. Começou a chorar e por certo tentaria fugir, não fosse estar paralisada de medo. O sargento aproximou-se dela, fez-lhe o sinal da cruz com a arma, como numa extrema-unção, e rebentou-lhe o seio esquerdo com um tiro abafado pelo silenciador. O corpo dela foi cuspido pelo impacto e caiu desamparado de costas. O último movimento no seu corpo, foi o do pénis tombando morto sobre os testículos.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

BRASIL, VELÓRIO DOS SONHOS

Excerto do romance inédito "Brasil, Velório dos Sonhos"  


 "É melhor que fale por nós a nossa vida,
                   que as nossas palavras."
                                                         Mahatma Ghandi

Ninguém é verdadeiramente verdadeiro. Mesmo quando os princípios da nossa sensibilidade humana e dos nossos sentimentos nos induzem a sermos honestos, existe sempre uma reserva intima, um medo de uma dor antiga, um trauma que por vezes nos fere o pensamento e nos impede de contar seja para quem for certos pormenores da nossa vida. Não agimos assim por não confiar em quem amamos, ou porque não desejássemos partilhar esses acontecimentos, mas porque todos nós temos segredos que como teias de sombras nos enredam nas caves escuras, húmidas e bafientas, onde habitam as aranhas viscosas e negras da nossa intimidade aprisionada.
Existem pormenores da existência de cada um de nós, verdades ocultas que marcaram a nossa vida, que pretendemos esquecer, mas que em determinados momentos, como pedras atiradas pelo subconsciente nos embatem contra a memória e nos fazem reviver a dor e a vergonha da ferida e do acto que pretendíamos esquecer.
No fundo, só cada um conhece todos os filamentos da sua própria vida. Nela existem todos os tempos: o passado, o presente e o futuro. Alguém pode saber muito de outra pessoa até ao que pensa ser o ínfimo detalhe, mas o facto é que desconhece muito do todo que ela representa. Factos que a marcaram? Como reage o seu espírito em determinadas situações? Que pensamentos ou desejos a assediam permanentemente? Aquilo que efectivamente cada um é no espaço aberto da sua personalidade, muitas vezes camuflada?
Nem por Amor se conta tudo. E esse é o estádio mais frágil, disponível, apaixonado, sincero e verdadeiro da alma.
Existem factos que pretendemos omitir para nos protegermos a nós e aos outros, mas também porque nunca os conseguiremos contar.
A verdade é que somos cobardes, envergonhados, vergonhosos, fomos atraiçoados e somos traiçoeiros e esta reserva sobre a nossa existência íntima permite-nos estar a salvo, vivendo uma certa liberdade condicionada, num mundo que nos vigia, acusa, cataloga e encerra em ficheiros, que nos formata, e onde jamais poderemos ser livres.


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

OS AMANTES

OS AMANTES

Os amantes sobrevoaram a noite e entraram pelas janelas abertas do quarto, livres pelo desejo. Despojaram-se das penas, apressadamente, cobrindo o chão com as pétalas da sua nudez. Depois, num frenesim, depenicaram-se sobre a cama e, numa vertigem humana, deixaram-se prender na gaiola íntima do prazer, sacrificando a liberdade às grades sensuais.
Beijaram-se, acariciaram-se, amaram-se, sem dizerem uma única palavra, apenas exaltados pela voz excitante e frenética dos gemidos.
Por fim, quando os seus corpos ficaram saciados, recolheram do chão as suas almas de pássaros e emplumando-se em silêncio, esvoaçaram de seguida em direcções diferentes, rasgando num golpe de asa os lençóis do céu, como aves migratórias de sentimentos que procuram no clima quente do sexo iludir a fria solidão dos ninhos.