Cessado o contrato com a editora que publicou o meu 5.ª livro "Os Filhos Não São Maus" (com sua consequente saída do circuito comercial), cá estou a disponibilizar para os leitores generosos que me seguem em todo o Mundo um dos contos dessa obra.
Livro com 170pgs.
Quem o pretender adquirir pode contactar-me pelo e-mail:
carlosmanuelsantosoliveira@gmail.com
O
FILHO DA LÉSBICA
-
Quem é o meu pai sua lésbica?
O
meu filho precisou de dezasseis anos de profunda cobardia, para finalmente me
revelar o fundamentalismo do seu íntimo e me atacar como uma bomba de controlo
remoto armadilhada de raiva.
Nunca
tentei proteger-me, ou protegê-lo. Simplesmente porque nunca entendi que o acto
da sua concepção tivesse sido uma opção egoísta para satisfazer o meu prazer e
afirmação social. Nem tão pouco que a minha forma de vida e o meu status sexual
fossem uma viagem perigosa na contramão da sociedade. Contudo, logo que foi
possível que o meu filho tivesse entendimento para perceber as minhas
explicações do porquê do nosso mundo ser uma espécie de mundo às avessas do dos
outros, não hesitei, e comecei lenta e tranquilamente a explicar-lhe as razões
da nossa existência, dos meus princípios e dos factos que consistiam o nosso
dia-a-dia.
Bem
sei que não é fácil para uma criança ainda imatura ter a percepção e o
entendimento para discernir a verdade da mentira, avaliar a diferença entre o
certo e o errado, ou simplesmente ter consciência do peso dos actos humanos.
Contudo
preferi elucidá-lo na infância, tendo em vista que este estado de coisas poderá
porventura tornar-se ainda mais complexo para um adolescente, confundido e
assediado pelas opiniões dos amigos. Por uma outra realidade familiar “normal”
e “correcta”, com todos os personagens ocupando a sua posição exacta no cenário
do lar e desempenhando os seus papéis com disciplina, rigor, e de forma
exemplar.
Mas
como eu não me sentia errada, nem tão pouco um mau exemplo, fiz o que tinha que
fazer: viver sempre a minha vida, sem me preocupar com o preconceito das
opiniões.
Logo
que logrei a estabilidade profissional, abandonei a casa dos meus pais e
contraí um empréstimo para comprar o apartamento onde resido. Livre, no meu
próprio espaço, foi-me então possível tomar uma das maiores decisões emocionais
e sentimentais da minha vida; passar a viver em união de facto com a Alice, a
minha namorada de longa data, desde o liceu. Já haviam passado sete anos sobre
o início do nosso relacionamento e não existiam quaisquer dúvidas que nos
amávamos e que o nosso Amor era feliz.
Depois,
quando a minha natureza, num apelo físico e psicológico, começou a reclamar a
maternidade, as duas tivemos longas conversas acerca do que uma criança
representaria na nossa vida e na sedimentação do nosso Amor e dos nossos ideais
familiares. E se tal coexistência podia de alguma forma comprometer o
bem-estar, a integração social e o futuro do nosso filho? Analisámos todos os
contextos e a conclusão a que chegámos foi a de que a ternura e a afectividade
não se podem distinguir ou ser diferentes nas relações maritais homossexuais ou
heterossexuais. Se existir Amor e carinho, onde é que reside a diferença? Em
nossa opinião o Amor não é uma predisposição masculina ou feminina, nem tem uma
orientação ou vocação inequivocamente heterossexual. Ele é tão-somente um
sentimento livre, despreconceituoso e sem regras definidas e obrigatórias, e
que se pode expressar num relacionamento entre pessoas do mesmo sexo.
Com
toda a certeza, unicamente devido ao facto de sermos mulheres, não deixaríamos
de ter competência para constituir uma família unida e feliz. Por essa razão
concebemos a ideia fundamental da minha gravidez, que veio a concretizar-se
através de um banco de esperma e do método de inseminação artificial.
Todos
os estágios de crescimento do nosso filho foram acompanhados e tiveram o mesmo
significado emocional e parental, do que ocorreria nas famílias ditas
“normais”. A nossa família era um exemplo de felicidade.
Até
que o meu filho, uma sombra masculina, decidiu pôr tudo em causa.
-
Quem é o meu pai sua lésbica?
-
Tu sabes que não sei. Já te contei a forma como foste concebido. Não te escondi
a verdade.
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Posso ser filho de qualquer um. Um criminoso, um maricas, um sem-abrigo, que
por falta de dinheiro e como um boi se submeteu à ordenha.
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A selecção dos bancos de esperma é mais apertada do que pensas.
-
Está-se mesmo a ver. Os tipos têm escrito na testa quem são e o que fazem. Você
pensa que sou estúpido? Você não tinha o direito de fazer isto comigo! Negar-me
a possibilidade de conhecer o meu pai, fazendo de mim um órfão da inseminação
artificial.
-
Mas nós amamos-te! Não achas que isso é o mais importante?
-
O que é que você sabe de Amor? Colocou um filho no mundo por meios artificiais,
frios e insensíveis, vazios de afectos, sem se importar minimamente com os
sentimentos futuros desta sua concepção egoísta.
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Isso não corresponde à verdade. Mas mesmo que tivesses um pai, no que é que isso
alteraria a situação?
-
Isso significaria que eu era uma pessoa “normal” e não o filho de um cocktail.
Você roubou-me o direito de usar e sentir a palavra pai.
-
Mesmo que ele jamais te pudesse amar e não ser verdadeiramente um pai?
-
Isso você nunca o saberá, porque pura e simplesmente me roubou essa
possibilidade, colocando no seu lugar um homem de saias, um travesti. Só não
quero que continue a forçar-me a admitir a sua mulher como algo que ela nunca
será ou poderá substituir, um pai. Ela é apenas uma “fufa”. A amante da minha
mãe.
-
Estás a ser muito injusto. Uma besta. Por acaso até hoje faltou-te alguma
coisa? A Alice esteve sempre presente e
amou-te como um filho. Dedicou parte do seu tempo e do seu dinheiro à tua
educação. Não tens o direito de a acusar de nada, a não ser o facto de ser mulher
e viver em união de facto com a tua mãe. Mas se a acusares disto, isso só prova
que és um adolescente mimado, estúpido e ingrato que não sabe reconhecer o
quanto lhe foi dado, e um ignorante, incapaz de admitir que duas pessoas possam
viver juntas, por Amor, independentemente do seu sexo. Serás a prova provada do
nosso verdadeiro erro: acreditarmos que a nossa dedicação e carinho poderiam
ser correspondidas com a generosidade do teu Amor.
-
Tretas. Só tretas. Na verdade você pensa que alguém pode ser feliz quando vive
numa aldeia pequena e todos troçam do facto da sua mãe ser lésbica e viver
amantizada com outra mulher? Você não sabe o que é que eu passo no meu dia-a-dia!?
Por mais fortes que sejam os afectos e os carinhos que receba em casa, o que é
que eles podem contra esta tortura social?
-
Não aprendeste nada connosco. É pena. Desprezas o Amor em troca das opiniões e
dos preconceitos tolos dos outros. Diz-me com franqueza, no que é que essas
pessoas são melhores do que eu e do que a Alice?
-
Não se trata disso. Trata-se de eu querer ter uma vida “normal” e não ser visto
como um extraterrestre que vive no interior de uma nave espacial.
Desde
este dia, em que um “homem” entrou no nosso quotidiano, o relacionamento entre
mim e a Alice começou a deteriorar-se. O meu filho começou a minar-nos o Amor
com piadinhas do género; “tão fufinhas que elas são”, “como é que fazem para se
comerem uma à outra?”, “a Alice é sempre o homem, ou também é mulher?”.
A
situação chegou a um ponto insustentável desde que o meu filho me colocou entre
a espada e a cruz: «ou escolhes a fufa ou escolhes-me a mim. Dou-te uma semana
para decidires.» Um pirralho de dezasseis anos, mas em todo o caso um homem,
lançava assim um ultimato a um Mundo e a um relacionamento perfeito de mulheres.
Ele não se sentia verdadeiramente como o meu filho, mas apenas como um uma
sobra de esperma, contudo achava-se no direito de fazer chantagem comigo.
Via-se
bem que ele não me conhecia. Que não sabia que eu não tolerava homens. Que só o
tolerava a ele na vã esperança de que, por ser sangue do meu sangue e educado
por princípios sinceros, amistosos e de muito Amor, viesse a resultar dali não
um ser efeminado, mas um homem compreensivo, afectuoso, um ser humano de
verdade.
Apesar
de vivermos no século XXI, numa aldeia global que faz de todos nós cidadãos de
um progresso universal. Dos direitos às diferenças estarem legalmente
consagrados, nomeadamente ao direito dos casamentos homossexuais, o meu filho,
um adolescente, nascido no seio desta mudança e evolução é realmente o que diz
sentir ser: uma pessoa “artificial” e “anormal”. Mas, contrariamente ao que ele
pensa, tal não se deve ao facto dele ser fruto de uma inseminação clínica, com
o esperma de um dador anónimo, mas simplesmente por ele ser um catavento
social.
Termina
hoje o prazo que ele me deu para eu optar entre a sua presença ou a da Alice.
Já tomei a decisão. Sozinha. Afinal eu é que sou a mãe. Quando ele entrar em
casa nem vai precisar de perder tempo a fazer-me a pergunta. A mala que comprei
para o efeito, contendo a sua roupa, já se encontra à porta.
Não
vou chorar, nem tão pouco ter pena da sua partida. Afinal ele vai finalmente
ter a chance de escolher o seu caminho sem a “fufa” da sua mãe a ensombrar-lhe
o futuro.
Fico
tranquila. Fiz a escolha acertada. Não foi assim tão difícil optar entre o Amor
e um filho.
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